terça-feira, 26 de março de 2013

Poema 24


Busco refúgio para o meu coração berbere. Talvez um gesto, uma palavra, um oásis.
De ti guardo a memória ancestral do voo dos pássaros em busca do sul. No deserto
todos os caminhos são possíveis, só a sede e as estrelas nos guiam. Minha alma peregrina
busca sua plenitude no horizonte, na caminhada e no reencontro. O mapa da vida
impresso na palma da minha mão. A mnemónica que alimenta quotidianamente
a certeza que trespassa os minutos, os dias, as semanas, os meses, os anos, os séculos.
Em ti sacio a minha sede de água, de luz e de infinito. Em Ti sou mais Eu. Reconheço-te.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Poema 23


A escuridão densifica a luz. E tu chegaste na mais escura das noites. Mulher de fogo
incendiando o meu mundo. Pitonisa grega revelando o meu destino. Felino voraz
devorando o meu corpo. Por esses dias eu procurava pacientemente entre as ruínas
e os silêncios a matéria poética. O meu mundo era tão frágil que só as palavras o sustentavam.
E eu lapidava as palavras como se fossem diamantes duros e brilhantes, preciosos e perfeitos.
Corpo. Alma. Coração. Memória. Sangue. Desejo. Cidade. Pecado. Floresta. Amor. Redenção.
Hoje sei que contigo a poesia vai para além das palavras e essa certeza ilumina os meus dias.

Poema 22


Ficaste sem coração, a dor era maior do que a esperança. A tua mente era uma sombra
brilhando no escuro, absorvendo desesperadamente a luz . Sabias que não se escolhem
os caminhos nas encruzilhadas, mas não encontraste o rumo para os teus passos. O opróbrio
rasgou o teu útero e devastou o mundo, o silêncio devorou as palavras. As más notícias
chegam sempre de madrugada, como se precisássemos da claridade para ver a morte.
Nenhum ritual nos prepara para o descarnar da alma e para a corrupção do corpo.
Vivemos todos entre o céu e o inferno, no purgatório da consciência e da memória.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Poema 21


Os meus filhos nasceram em dias perfeitos. O meu coração cresceu cresceu cresceu
e tornou-se abrigo para os acolher. Chegaram frágeis e luminosos, pequenas centelhas
de vida incendiando o mundo. Renovaram a promessa de uma alvorada primordial.
Sei pouco sobre as crianças. Mas encanta-me a sua ingenuidade e a sua forma atrevida
de fazer perguntas. Desarrumam o meu mundo e deixam as coisas num outro lugar
onde só elas as sabem encontrar. São sábias e bem mais sensatas do que eu. Colho
dos seus risos e dos seus espantos a pureza para alimentar o coração e dar leveza à alma.


Poema 20


Com a delicadeza do teu tango entorpeces-me os cinco sentidos. O meu coração pulsa
ao teu ritmo, sigo intuitivamente o teu movimento, já nada em mim me pertence,
abandono-me a ti. Felina revelas-me as artes secretas do amor, os mistérios
do eterno feminino. Emerge em mim a pulsão masculina, a coregrafia tosca dos gestos,
o jogo condescendido do domínio. Sorris pois sabes que a lua prevalece sobre o sol
na gestação dos instintos e das pulsões. Inebrias-me com o odor de rosas incandescentes
ardendo por sob o teu ventre, possuis-me deixando-me penetrar horizontalmente o teu corpo.


Poema 19


O sol de inverno é mais lento e breve, torna os contornos do rosto mais suaves,
os sorrisos mais luminosos e as juras de amor mais sábias. Ícaro aguarda pacientemente
que as suas asas se consolidem enquanto suspende o corpo por sobre os labirintos
da cidade. Resiste à tentação do voo vertical. Recorda os dias em que os anjos ainda habitavam
os telhados das igrejas e metiam conversa com as moças que passavam. Recorda os dias
em que os anjos foram renegados por resistirem à voracidade da luz, à fragilidade das asas
e à tentação dos odores do incenso e da flor de laranjeira. Ícaro prefere o mel à cera.


Poema 18


O amor de inverno tem raízes profundas, anuncia as florestas virgens por desbravar,
os pomares fecundos por devorar e os campos de flores por eclodir. Esta é a forma perfeita
do corpo: o ressurgir das cinzas, o húmus fértil. Renasço em ti. Sinto irromper a força no peito,
nos braços, nas mãos, nos dedos. A impaciência dos dias formigando nos meus gestos,
a vontade indómita de te agarrar por dentro, a curiosidade de saber por que sorris tão lentamente.
Hoje sei que o teu amor me protege e nutre contra os rigores do inverno. Hoje sei que consigo
escrever de coração leve e feliz. Hoje sei que a poesia é a forma perfeita da alma e do coração.


Poema 17


Libertas os sentidos ocultos do corpo, segregas os odores lunares, embriagas-me.
Deixas que a noite me revele a razão verdadeira de seres eternamente mulher.
Oiço o chamamento sussurrado pela tua voz. Perco-me em ti. Busco instintivamente
na árvore da sabedoria, a mnemónica ancestral do rituais que te incendeiem o desejo.
Percorro lentamente o teu corpo – a boca os lábios o pescoço os seios o ventre as coxas
o sexo –. Perco-me em ti. Os nossos dois corpos entrelaçam-se, fundem-se, completam-se.
Secreto e puro, surge o amor, incorruptível pelas palavras sibilinas que anunciam o pecado.


Poema 16


Há flores que nascem rente ao corpo, como esboços de gestos impronunciados
ou como indícios de um rio por nascer. Quando os amantes chegam desordenam
os jardins plantados por sobre o ventre da terra húmida. Só então fazem sentido
o choro e o riso, o desejo e o esquecimento, o ocaso dos dias em que celebrámos o sol
e o mistério das águas. Pronuncias o teu nome como um verbo de madrugadas prematuras.
Escuto fascinado o rumor lunar do sangue que preserva o teu corpo fecundo. O desejo eclode
como um fruto jovem escondido entre a folhagem. Não nos deixamos surpreender pela luz.


Poema 15


Suspendo o movimento do mundo e recentro meridianamente o meu corpo vegetal.
Mas um fogo ácido corroí-me a garganta, enquanto expando a voz através do ar,
enquanto evoco o teu nome húmido. Tudo em mim pede água, todo o corpo converge
para a boca. Sempre soube a sede como o mistério de encontrar as fontes mais secretas.
Por vezes ocorre-me que pactuas com o mar, resgatando-lhe a memória ou talvez o silêncio.
Nesses momentos, vejo a tua profunda alma azul. Pudesse eu somente ser um pássaro
absurdo com asas vegetais, e respiraria todo o azul do mundo, demoradamente.



Poema 14


Não explico o súbito amadurecimento dos frutos ou a cegueira dos pássaros.
Mas, enquanto despertava, cicatrizes vivas inscreveram o destino na minha mão,
impossibilitando a concretização dos gestos do amor. Talvez, talvez seja possível
reduzir os cinco sentidos a um discernimento oculto ou a loucura seja a ciência
de um fluir muito mais profundo. Não explico porque me lancei para o abismo
com a certeza de não conseguir sobreviver. Mas, enquanto mergulhava,
o corpo tornou-se mais leve, impossibilitando a feroz penetração da dor.



Poema 13


Não explico porque me guiam os ritmos lunares e o oculto rumor do sangue.
Mas, enquanto dormia, feridas vagarosas sorveram a frescura da minha boca,
impossibilitando a nomeação das coisas do mundo. Talvez, talvez o espanto
me tenha desalinhado os pensamentos mais secretos ou a ignorância não seja
suficiente para dar leveza ao coração. Não explico porque me foi marcado o corpo
com carreiros de cinza e os olhos cobertos de sal. Mas, enquanto sonhava,
o ar tornou-se mais compacto, impossibilitando a natural propagação da luz.


Poema 12


Vai ficando de nós uma breve história de mágoas. Tudo se resume à memória
dos pequenos momentos de imperfeição, lastro que nos impede de voar,
de sermos animais guiados pela sede. Sussurramos segredos intransmissíveis pelo ar.
Oiço-te pronunciar uma palavra que evoca o fim de todas as coisas. Há palavras
que parasitam a alma, nos roubam a coragem e a vontade. O esquecimento é uma morte
lenta e doce; adormecemos dentro do outro. Talvez nem reparemos nas pequenas flores
que foram esvoaçando do nosso corpo enquanto chorávamos sem motivo aparente.


Poema 11


Vai ficando de mim uma breve história de mágoas. Retrato a preto e branco que acentua
as sombras da alma. Roupa envelhecida e molhada. Tenho que perder o hábito
de pôr à prova a minha coragem, de me lançar ao mar e esperar que um barco passe.
Saber a geometria exata de todos os caminhos possíveis entre duas casas,
quando o calor nos dilacera e analisa o corpo armazenando-o em frágeis e
pequenos frasquinhos de essências. Os passos rápidos mas inseguros com que corro
atrás de mim, deixando um trilho fresco de verdura acabada de semear.


Poema 10


Vai ficando de ti uma breve história de mágoas. Inalo o cheiro doce da memória,
que me entorpece os sentidos. Odor de rosas. Sopro vegetal abrindo caminhos
por entre as pedras, procurando entre as casas e as pessoas que partem.
A imensidão da cidade depende da agudeza dos olhos. Mapa de lugares,
desertos e abismos, em que tudo ganha uma espessura translúcida,
como se fosse possível saber de cor as fontes ou pronunciar o nome de todas as ruas.
A alma de todas as coisas com que te exorcizo, com que te evoco para trazer de volta.


Poema 09


Pudesses mesmo assim saber o lugar e o momento e encontraria talvez um refúgio,
entrepondo a voz entre corpo e a alma, invocando um a um todos os rituais
de iniciação da sensibilidade para a dor. As florestas que os meus gestos contêm
e a luminosidade do verbo que conjugo quando abandono o meu corpo aos bichos,
esses cruéis portadores de beijos impios e profundos. Talvez prefira fecundar a terra
com o meu sangue a deixar que alguém me descubra enquanto durmo,
enquanto alinhavo na carne e na pedra a minha breve memória epigráfica.


Poema 08


Marcas-me para a morte urgindo-me com a frescura segregada pela hortelã
e penetras a minha mente com um dedo ardente e perfeito. Devoras o meu corpo
como uma oferenda à devastação das feridas vagarosas. Surpreendes-me
na impossibilidade de converter os signos da terra e do céu em palavras e
esperas que perca a capacidade de me suspender por sobre os abismos.
Procuras o silêncio derradeiro, aquele que me separa de todas as coisas.
Sempre soube o silêncio com uma irremediável sedimentação da morte.


Poema 07


O que germina na sombra tem mais sede. E o seu coração pulsa num rumor selvagem
adivinhando os lugares secretos onde a lua oculta as minhas sombras. Nem os pássaros
pressentem a sofreguidão com que a luz perpendicular me devora as asas.
O veneno amnésico que se liberta das rosas destruídas pelos meus passos,
quando o ar sustenta um olhar mais demorado que encontra desprevenidos
os meus pensamentos mais secretos e serenos. É perigoso ser feliz. Tudo em nós
se torna mais frágil, mais dócil e mais transparente; desperta a ferocidade dos bichos.

Poema 06


Crio uma mnemónica do desejo, decorando as partes secretas e húmidas do teu corpo,
revivendo os gestos quentes e fermentes com que me desarrumaste os sentidos,
enquanto, dentro das madrugadas, descobríamos rios navegáveis até à fonte.
Sôfregos, bebíamos as águas puras e saciávamos vorazmente todas as sedes.
Fazíamos o amor, com a ancestral sabedoria animal. Era verão e tudo era possível.
Agora, crio um poemário de outono, recolhendo das árvores e dos livros
as últimas folhas onde leio as memórias dos dias em que fomos felizes.

Poema 05


Espero pacientemente que me cresçam as asas e me seja concedida a leveza dos pássaros.
Não me conformo com a aritmética das horas, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos.
É impossível fazer luto dos vivos. E eu sinto-te viva, completa e intensa dentro de mim.
Espero o súbito. Algo que me apanhe desprevenido. Uma voz que chame pelo meu nome,
um olhar quente e familiar, um subtil toque no ombro, um entrelaçar de corpos num abraço.
E, por brevíssimos momentos de insensatez, deixo que o desejo me incendei o sexo,
enquanto te imagino completamente nua, enquanto te recordo detalhadamente o corpo.

Poema 04


Há pecados que não se podem cometer. Sei que a sua lenta expiação purifica a alma
mas não revivifica o coração. Consolida-se inexoravelmente uma memória de cinzas,
de ruinas e de imperfeições. Estou só, nada sobrou para além de mim. O silêncio
tornou-se compacto e as palavras perderam o seu sentido seminal, nada nasce delas.
No escuro, não ouso sequer respirar, temo que o latejar do corpo me denuncie
à voracidade dos animais noturnos que me depredam a pureza, a esperança e a coragem.
Reduzo os dias ao essencial: comer, beber, dormir; meditar, sonhar, esperar.

Poema 03


Saio de casa para trespassar o dia com a certeza da noite. Canso metodicamente o corpo
até doer, até não restarem forças para resistir ao sono ou para rememorar os sonhos.
Quando saio de casa a cidade fica maior, as distâncias aumentam incomensuravelmente.
Percorro todas as ruas sem definir previamente os caminhos que trilho, sem cobiçar o horizonte,
sem parar para chegar, sem entrar nas casas. Sem olhar os rostos, procuro-te
sabendo-te impossível de encontrar, na cidade os teus passos não deixam vestígios.
São tantos os lugares onde te imagino que não sei por onde começar. Parto.

Poema 02


Há muito que deixei de visitar os amigos. Não sei o que lhes dizer acerca de mim,
nem que provas palpáveis lhes posso apresentar que demonstrem quem sou.
As suas casas são-me incómodas. Sinto-me imenso, não caibo por entre as paredes.
Não lhes sei explicar onde acabo eu e começa o mar. Digo-lhes os cais e os barcos,
a vontade de navegar, recomendam-me os mapas, as rotas e os destinos.
Não lhes sei explicar onde acabo eu e começa o silêncio. Digo-lhes as palavras e os poemas,
a vontade de revelar, recomendam-me a gramática, a estilística e a ortografia.

Poema 01


Nestes dias imensos de outono alimento-me pacientemente de poemas,
de fotos antigas e de cartas de amor. Hiberno no aconchego da memória
de um sol permanente, do riso das crianças e dos momentos infinitos.
Respiro devagar para conter a voz e para sentir o coração ainda entorpecido.
O corpo reduzido a um ponto microscópico é mais fácil de esconder.
Só as sombras e as cicatrizes o denunciam. Estou exausto de mim.
Prevejo que o inverno chegará de forma repentina, irremediável e definitiva.